Em seu segundo dia, 6 de novembro, o V Seminário de Direitos Humanos contou com duas mesas, que abordaram os processos judicializantes na construção da pena e as práticas judiciárias no cumprimento da pena. Participaram das palestras psicólogos e representantes de outras áreas relacionadas à temática.
Construindo a pena: processos judicializantes
A mesa “Construindo a pena: processos judicializantes”, coordenada pelo psicólogo Alexandre Nascimento (CRP 05/30108), colaborador da CRDH/CRP-RJ, abriu o segundo dia do Seminário.
Estela Scheinvar, Selma Amorim Pau Brasil, Alexandre Nascimento e Acácio Augusto, da esquerda para a direita, formaram a mesa “Construindo a pena: processos judicializantes”.
O integrante do Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol) Acácio Augusto elogiou o envolvimento do CRP-RJ em “lutas políticas corajosas”, mas afirmou que falta engajamento dos estudantes de Psicologia. “Os jovens não estão preocupados com a dimensão política de sua prática”, colocou. Com base em Giles Deleuze e Michel Foucault, ele explicou que a sociedade do medo busca conter a liberdade dos jovens por meio de medidas socioeducativas. Lembrou também que “o crime é um conceito historicamente construído e seus preceitos mudaram. A polícia de que fala Foucault, do século XVIII, surgiu para aumentar o esplendor do Estado, enquanto a de hoje é baseada na repressão como política social. As ações preventivas do Estado são um desdobramento do que Foucault chamou de poder pastoral”.
Acácio afirmou que o aumento do número de ONGs está relacionado com o interesse das empresas em financiar projetos para ter abatimentos fiscais, e elas acabam virando administradoras das medidas socioeducativas em meio aberto. “A medida socioeducativa é um eufemismo político para a pena. Os adolescentes aderem ao controle, fortalecendo a ideia de ‘cidadão policial’. Algumas ONGs usam adolescentes como ‘pastores’ para atrair outros jovens para as atividades culturais, mostrando que só é bom morar na favela por causa dos projetos sociais. Isso os leva a apatia e os transforma em policiais de si mesmo. Os projetos não se destinam só aos jovens que cometeram crimes, mas também os que ‘possam vir a cometer’, por viverem em ‘áreas de risco’”, pontuou.
Acácio finalizou sua fala dizendo que “a solução para o fim do poder pastoral seria o desenvolvimento de práticas alternativas à sociedade penal, substituindo os tribunais por diálogos entre as partes, por meios terapêuticos e psicológicos, a fim de restaurar os laços comunitários rompidos pelo crime. O abolicionismo penal fala em lidar com situações-problema, e não crimes, de modo a romper com a lógica do sistema penal em seu conjunto”.
A convidada Estela Scheinvar, professora da Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ, afirmou que o Conselho abriu portas para as discussões das práticas psi e dos atravessamentos que ela faz com outras áreas como a Medicina e a Sociologia. Segundo ela, a união entre o poder público e o judiciário inibe as relações e subordina o pensamento “ao justo e verdadeiro”. “O direito é visto como neutro, universal e que se coloca ao lado do bom cidadão. O Estado, por sua vez, o defende e o cidadão tem que fazer por merecer. As subjetividades acabam atreladas às normas”, comentou. Estela explicou que a concepção burguesa do Direito como contrato jurídico obrigatório, no qual cada um faz a sua parte e luta por seus direitos, não permite que haja um debate entre os interesses, além de formar identidades uniformes.
A professora explicou que, segundo Foucault, a lei é a solução mais econômica para manter a ordem e quem a aplica é o detentor da força. “Nesse pensamento, a lei é soberana e, para aplicá-la, vale qualquer coisa, inclusive o uso de formas corpóreas das práticas judiciárias na subjetividade. Além disso, o estabelecimento da verdade se dá de acordo com as leis”. De acordo com ela, essa lógica jurídica está presente não apenas nos tribunais, mas também na vida cotidiana.
Estela concluiu seu pensamento comentando que os profissionais, às vezes, atualizam as formas de controle sob a ótica da ciência. “É o caso dos Conselhos Tutelares, que controlam a vida das pessoas que os procuram. Se um vizinho acha que uma mãe está maltratando os filhos, ela é denunciada ao CT, que pode decidir levar as crianças embora. Vemos que a população julga e executa, e o apoio social e emocional serve como uma forma de controle. A reclusão se dá a céu aberto”, encerrou.
A mesa foi finalizada com a fala da psicóloga Selma Amorim Pau Brasil (CRP 05/8290), diretora técnica do CAPS-ad Centra-Rio, que fez uma abordagem diferente, falando sobre o que a Psicologia não quer nos processos judiciais. “A Psicologia não quer ser agente indutor de controle nos julgamentos, nem ser instrumento de judicialização e ficar no lugar da pena”, afirmou. Segundo ela, nos CAPS-ad, a demanda recebida é a do outro, que pode ser o pai, a mão ou o Conselho Tutelar, não permitindo que o sujeito seja inserido. A psicóloga comentou também que, “muitas vezes, o paciente não sabe por que foi enviado para o equipamento. Por achar que não existe uma demanda, ele pede pra ser encaminhado para algum grupo de Narcóticos ou Alcoólicos Anônimos”.
Outra questão levantada foi a falta de diálogo entre os equipamentos envolvidos no processo. “O judiciário encaminha o paciente, mas não há diálogo com quem o recebe. As equipes de saúde não sabem a respeito de algumas demandas de tratamento vindas do Judiciário. O ideal seria repensar as formas de realizar esses encaminhamentos, promovendo trocas entre os equipamentos envolvidos. Dessa maneira, possibilitaria o intercâmbio de informações sobre os paradigmas de cada um, facilitando a interlocução”.
Durante o debate, surgiram questões como: o chamamento dos psis para práticas judicializantes no cotidiano, como é o caso do Depoimento sem Dano; a passagem da sociedade disciplinar para a de controle; as formas como os profissionais podem resistir a práticas impostas; etc.
Cumprindo a pena: práticas judiciárias
A mesa “Cumprindo a pena: práticas judiciárias” teve como convidados Sérgio Verani, desembargador e professor da Faculdade de Direito da UERJ, e Tania Dahmer, doutora em Serviço Social e Assistente Social da Secretaria de Administração Penitenciária. A mesa foi coordenada pelo psicólogo Pedro Paulo Bicalho (CRP 05/26077), conselheiro-presidente da Comissão Regional de Direitos Humanos do CRP-RJ.
Tania Dahmer, Pedro Paulo Bicalho e Sérgio Verani, da esquerda para direita, foram convidados da mesa “Cumprindo a pena: práticas judiciárias”.
O desembargador discorreu sobre a ideologia da punição que perpassa a sociedade, inclusive no pensamento dos juizes criminais, que dão sentenças cada vez mais repressoras e segregadoras. “Além disso, existe um descaso com as garantias dos presos no cumprimento da pena, previstas no Código Penal e na Constituição Federal. O prazo para a progressão de regime de alguns presos é tão adiado que, às vezes, eles já têm direito a outras progressões sem nunca ter conseguido a primeira”, exemplificou.
Outro ponto levantado por Verani foi a respeito da burocratização do trabalho, “devido a uma fragmentação do processo, já que um juiz condena e outro executa a pena. Com isso, quem sentenciou nunca vai saber o que aconteceu com o preso, ele lava as mãos. Existe um distanciamento como se o preso não fosse um cidadão, um ser humano”.
Segundo ele, existem projetos de lei tramitando no Congresso Federal para que os presos cumpram 1/3 da pena para terem direito a progressão penal – atualmente, esse tempo é de 1/6. O PL também prevê o restabelecimento do exame criminológico e o monitoramento eletrônico de presos condenados por crimes hediondos. “Existem casos em que mesmo que o condenado tenha direito a progressão penal e passe pelo exame criminológico, não consegue a liberdade condicional. Qual o sentido da negação das garantias, mesmo quando ela está prevista por lei?”, indagou.
Continuando esse pensamento, Tania Dahmer falou sobre as diferenças entre o que está previsto em lei e o que acontece efetivamente. “Quando alguém ‘graúdo’ precisa de um habeas corpus, ele o consegue em 24 horas, enquanto para um ‘qualquer’ demora meses. É um sistema que aumenta as desigualdades e dificulta a efetivação dos direitos. Na realidade, não dá para levar a cabo o pensamento de que, perante a lei, todos são iguais. A Lei de Execução Penal prevê que cada preso deve ficar em uma cela única. Quem tem bom comportamento vive com outros 70!”, ironizou.
De acordo com Tania, entre as diversas medidas presentes no Código Penal, está a medida de segurança. Ela se aplica a pessoas que, por questões psíquicas, não entendem o caráter ilícito do ato cometido. O “acusado” passa por um psiquiatra forense que atesta se havia sanidade ou não no momento do crime. Caso não haja, ele é considerado inimputável e fica internado em um hospital de custódia, recebendo tratamento por, no máximo, três anos. “Na teoria, isso é lindo, mas o que acontece são excessos e desvios, com pessoas institucionalizadas há 50 anos. Hospital de Custódia tem um caráter prisional. Mas a Lei da Saúde Mental prevê mudanças no organograma, com a colocação de hospitais sob a responsabilidade da Secretaria de Saúde, ao invés da Secretaria de Estado da Administração e da Previdência”, problematizou.
Durante o debate, uma psicóloga falou sobre a perda da cidadania e dos direitos quando a pessoa é presa, havendo “um processo absurdo de desumanização”. Uma outra espectadora opinou que é preciso se pensar em uma solução para a substituição lenta e gradual do sistema prisional. Sobre isso, o desembargador julgou que a segregação decorrente nas prisões é uma questão política, mas que falta uma mobilização social para o direito dos presos e para a luta antiprisional.
Texto e fotos: Ana Carolina Wanderley
13 de novembro de 2009